26/04/2024

Pontos do projeto de regulamentação da reforma podem gerar mais judicialização

Por: Laura Ignacio
Fonte: Valor Econômico
Advogados tributaristas se debruçam desde a noite de quarta-feira sobre o texto
do primeiro projeto de lei (PL) que pretende regulamentar a reforma tributária.
São essas as regras que permitirão a aplicação da Emenda Constitucional (EC)
nº 132, de 2023, que altera o sistema tributário nacional. Porém, após uma
primeira análise, especialistas alertam que o texto, se ficar como está, poderá
gerar mais judicialização.
Diversos pontos entre os cerca de 500 artigos da proposta do governo foram
destacados por terem grande potencial para levar os contribuintes ao Judiciário.
Um deles trata da previsão de que a disponibilização de veículos, equipamentos
de comunicação, planos de assistência à saúde, educação, alimentação, bebidas
e seguros a pessoas físicas deve ser tributada pelo Imposto sobre Bens e
Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) - os dois novos
tributos que vão compor o chamado “IVA dual” (artigo 38).
Segundo a advogada Lina Santin, sócia do escritório Salusse Marangoni Parente
e Jabur Advogados, o governo diz que com a medida quer inibir a remuneração
indireta, mas fere os princípios do crédito amplo e da neutralidade, garantidos
pela Constituição. “O bem de uso e consumo pessoal é o que não está
relacionado à atividade da empresa”, afirma. “Em relação a seguro e plano de
saúde a situação é ainda pior porque o custo é elevado e, hoje, é dedutível do
IRPJ e CSLL, por serem despesas operacionais”, diz.
Uma discussão judicial que já existe e deve ser mantida, mesmo após a reforma
tributária, se refere à responsabilidade solidária por não pagamento de tributo.
O projeto do governo amplia a lista de pessoas, para além das já previstas no
Código Tributário Nacional (CTN), que podem ser responsabilizadas pelo
descumprimento de obrigações tributárias do contribuinte (artigo 24). Incluiu:
o transportador, o leiloeiro, desenvolvedores ou fornecedores de programas ou
aplicativos usados para o registro de operações com bens ou serviços.
“Na prática, a fiscalização tem o costume de incluir a maior quantidade possível
de responsáveis solidários, o que já gera discussões judiciais”, afirma Lina. “O
projeto poderia ao menos apontar a necessidade de dolo [intenção] ou a
restrição dessa responsabilização para quando houver abuso ou conluio.”
Muitas brigas vão acontecer por causa da amplitude da tributação pelo IVA”
— Luiz R. Peroba
Outro litígio que deve persistir, de acordo com Lina, trata da possibilidade de
pedir ao Fisco o que foi pago a mais (repetição de indébito) apenas se o
contribuinte comprovar o ônus econômico do imposto, segundo o disposto no
artigo 166 do CTN (artigo 36 do PL). “É comum o contribuinte ter o direito à
devolução do que pagou a maior negado com base no artigo 166 do CTN, o
que o leva ao Judiciário por enriquecimento ilícito do Estado”, diz Lina.
“Manter essa exigência, violaria o princípio da simplicidade e manteria essa
prática.”
O varejo também teria que recorrer aos tribunais por causa de uma velha queixa:
a tributação das bonificações (produtos fornecidos além dos efetivamente
encomendados). Para não serem tributadas pelo IBS e CBS, conforme diz o PL
(artigo 12), as bonificações precisarão ser destacadas nas notas fiscais. “Essa
burocracia já gera litígio atualmente e isso deve continuar existindo”, explica a
advogada Thais Shingai, professora no Insper e sócia do Mannrich e
Vasconcelos Advogados. Ela lembra que, no Conselho Administrativo de
Recursos Fiscais (Carf), há decisão favorável aos contribuintes
(acórdão nº 9303-013.338).
No geral, o IBS e a CBS incidirão somente sobre operações onerosas. Mas Thais
chama a atenção para algumas operações não onerosas que ficarão sujeitas à
tributação, o que deve gerar novos questionamentos pelas empresas (artigo 12).
“É o caso das doações entre partes relacionadas, que são filiais e outras
empresas vinculadas em grupos empresariais”, diz. Ela aponta a previsão de que
a base de cálculo corresponderá ao valor de mercado dos bens ou serviços “Nos
preocupa porque a atribuição de valor de mercado é historicamente algo que
gera divergência de interpretação.”
O PL também prevê que as receitas financeiras oriundas de reservas técnicas
serão tributadas pelo IBS e CBS, o que afeta seguradoras e planos de saúde. “Já
existe hoje contencioso sobre isso, envolvendo PIS/Cofins, com votos
favoráveis às empresas no Supremo Tribunal Federal, mas o PL insiste na tese
da Fazenda de que essas receitas decorrem da atividade principal desses
contribuintes”, afirma Breno Vasconcelos, pesquisador no Insper e sócio do
Mannrich e Vasconcelos Advogados. Segundo ele, para não haver esse risco de
litigiosidade deveria ser excluída a alínea “b” do inciso I do artigo 219 do
projeto.
Na Reclamação Constitucional nº 65301/SP, por exemplo, o STF concluiu que
as receitas financeiras decorrentes das aplicações das reservas técnicas não
caracterizam atividade empresarial típica das seguradoras. Segundo o voto do
ministro Dias Toffoli no RE 400479-AgR-ED, “é o prêmio que decorre da
atividade empresarial típica das seguradoras, e não outras receitas alheias ao
desempenho de seu mister típico, como são as receitas financeiras em questão”.
Já o sócio do Pinheiro Neto Advogados, Luiz Roberto Peroba, acredita que
muitas brigas vão acontecer por causa da amplitude da tributação pelo IVA,
independentemente do texto de regulamentação da reforma. “Tem muita gente
bastante incomodada porque atividades que não são tributadas como um bem
ou um serviço passarão a ser agora, como a locação de bens móveis, mas é a
natureza do IVA”, diz.
Por outro lado, Peroba lembra que o IVA funciona sustentado em dois pilares:
base ampla de tributação e uso integral do crédito. “Se o sistema de split
payment [artigo 50], que exige que todo contribuinte tome conta de quem paga
o imposto para poder tomar crédito, não funcionar corretamente, toda cadeia
de produção será onerada e isso, com certeza, vai gerar litígio”, afirma.